quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O que é sexo, o que é estupro: Mulheres Estupráveis



Coloco um assunto que me revira o estômago, que me assusta, que me dá
medo e que condiciona o que eu faço e o que deixo de fazer, que limita
a minha liberdade e a de todas as mulheres: estupro. Violência de
gênero a que estamos sujeitas pelo simples fato de sermos mulheres.
Nos últimos dois dias vi estarrecida que tinha sido cometido um
"estupro" no programa de televisão da Rede Globo: o Big Brother Brasil
registrou um rapaz entrando embaixo de um edredon e beijando uma moça
que não se move. Ele começa claramente a passar a mão no corpo dela
embaixo das cobertas e ela... não se move. Ele faz movimentos que são
extremamente parecidos com sexo e ela... não se move.

Bom, nas imagens divulgadas na internet, o que vemos? Sexo sem
consentimento. Não porque a moça disse um sonoro “não”, reagiu,
apanhou e gritou, mas sexo sem consentimento porque feito com alguém
que não tinha condições de consentir, de querer, de desejar.
Qual é o nome que o Direito Penal atualmente dá a isso? “Comportamento
inadequado” como afirmou a Rede Globo? Ou abuso sexual? Não. O nome
disso é “estupro de vulnerável” e é tipificado pelo art. 217-A:
Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com
menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº
12.015, de 2009)
§ 1o  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput
com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o
necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer
outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº
12.015, de 2009)

Pressionados pelos comentários nas redes sociais que falavam
claramente em estupro, a direção do programa, que no dia anterior não
interrompeu a violência, embora tivesse condições de fazê-lo; chama a
moça que já tinha afirmado momentos anteriores que não se lembrava do
que aconteceu, para perguntar se ela tinha consentido. Não lhe
mostraram o vídeo. Somente lhe questionaram. Ela coloca que sim, que
consentiu.
Embora seja possível que venha a afirmar que estava consciente durante
as carícias e possivelmente  uma penetração (vide os movimentos do
moço no vídeo) mesmo quando sair do confinamento, as imagens não
deixam dúvida. Trata-se de uma pessoa inerte.
O que nos interessa aqui, para além da discussão se o rapaz deva ser
preso ou não, mas que interessa igualmente ao Direito, é lançar a
pergunta: o que leva uma mulher a negar que sofreu estupro? O que leva
a sociedade, inclusive delegados, promotores e juízes a negá-lo? Para
as mulheres que sofrem a violência ou outro tipo de violência pelo
fato de serem mulheres, várias questões que passam pela cabeça: medo,
vergonha, sentimento de culpa. Em relação aos “operadores do Direito”,
há uma reafirmação do que o senso comum tem repetido nos últimos dias
no caminho de culpabilização da mulher.
São séculos incutindo na cabeça das mulheres que elas devem limitar
sua liberdade – de agir, de falar, de vestir e de transitar – para que
não provoquem a libido do homem e não justifiquem a ocorrência de um
estupro, estabelecendo aí, um verdadeiro privilégio* sobre o corpo
delas, mesmo contra a sua vontade.

O estupro já foi nomeado como crime contra os costumes, denotando o
papel que o sexo e as mulheres ocupavam na sociedade. O ato de
“contranger mulher à conjunção carnal” fazendo uso de violência ou
grave ameaça não era um crime contra a mulher, mas contra a moral da
sociedade, um crime contra os seus costumes. Há uma fala de Allan
Johnson que Heleieth Saffiotti resgata que é muito clara nesse
sentido. A autora afirma no livro Marcadas a Ferro que estupro era
coisa entre homens, em que um homem é punido com a “curra” porque
esteve com uma mulher que não estava disponível a ele, mas a outro.
Viola não as mulheres, mas um código patriarcal, entre homens.

A partir da reivindicação dos movimentos feministas, o Código Penal é
modificado em 2009  Lei nº 12.015, de 2009) e o crime passa a ser
encarado como ofensa à Dignidade e Liberdade Sexual. O que se quis
dizer com isso é que as pessoas, todas elas, inclusive as mulheres,
têm o direito de viver a sua sexualidade de forma livre, escolhendo
quando, como e com quem querem fazer sexo. Liberdade significa poder
dizer SIM, mas poder dizer NÃO também e isso não tem uma ligação com a
moral social, mas com a vontade da pessoa.
O medo do estupro condiciona a vida das mulheres, como já repisamos.
Quantas mulheres não limitam o lugar que frequentam por medo de serem
estupradas? O medo funciona como um verdadeiro controle: um toque de
recolher. Maior a restrição da liberdade quanto menor a condição
econômica da mulher. Estas que dependem de transporte público sabem o
risco que correm em transitar pelas ruas à pé ou em ônibus e metrôs à
noite. Não que um automóvel as livre de prática de violência por um
desconhecido, mas com certeza amplia o seu eixo de escolhas para estar
nos espaços.
No entanto, o “toque de recolher”, o cuidado em não estar sozinha na
rua (o que me lembra muito as regras sociais do início do século que
dizia que “moças de família” não deviam estar sem uma companhia
masculina de alguém de sua família à rua) não resguarda as mulheres
contra a violência porque a violência não vem só dos estranhos, em
becos escuros.
Ela também é praticada por amigos e conhecidos, homens que seriam da
confiança da mulher, com os quais, muitas vezes, ela tem uma boa
relação. Maridos, namorados, amigos, irmãos, um professor, um chefe,
um colega de trabalho... Homens acima de qualquer suspeita.
Trabalhadores, honestos, camaradas, ou não.
Tem-se o imaginário de que o estupro só é cometido por estranhos e
“doentes” contra “mulheres honestas”, “direitas”, “corretas”, o que
desprotege as mulheres e as expõe à violência diante de um prévio
consentimento social a partir da omissão em relação ao agressor e de
culpabilização em relação às vítimas. Criou-se, dentro do tipo penal
um padrão de “vítima”, de mulher “estuprável”, por mais que a lei não
faça mais essa ressalva com a retirada do termo “mulher honesta” do
Código Penal em 2009.
Basta que a mulher não esteja dentro do padrão que a violência pode
ser desconsiderada. Então qualquer uma que seja prostituta, ou que a
ela se compare por exercer livremente sua sexualidade ou por aparentar
que a vive usando uma minisaia, por exemplo, não pode ser sujeito
passivo de estupro. Aqui podem ser consideradas também as que teriam o
dever de satisfazer sexualmente, como as esposas, namoradas e mesmo as
“ficantes”. Se provocou com beijos, abraços, carícias e deu a entender
que queria o sexo, mesmo que depois venha a dizer que NÃO ou que tenha
ficado desacordada por efeito da bebida (o que acontece com homens e
mulheres, não sendo privilégio destas), então não podem posteriormente
alegar que foram estupradas.
O que discutimos quando levantamos a questão de que  é crime fazer
sexo com uma mulher que não pode consentir? Para além da leitura do
tipo penal, o que se quer dizer é que as mulheres tem o direito de
estar em lugares públicos, que tem o direito de se divertir, que tem o
direito de ficar bêbadas e, NÃO, que nada disso autoriza os homens a
fazer sexo com elas. É isso que o tipo penal, no fim das contas, quer
dizer. É isso que queremos dizer quando falamos que é crime.
O direito penal vêm no meio de um contexto que ainda possibilita que
os funcionários da Rede Globo, orientados para intervir diante de uma
prática de violência, não tenham impedido o rapaz. Em um contexto em
que a situação é acompanhada por comentários nas redes sociais que
afirmam que a moça é uma “safada”, ou que “bebeu porque quis” e que
por isso é responsável pelo que aconteceu.
O que nos interessa, mais que a prisão dos estupradores, é a mudança
de uma mentalidade que permite que o estupro aconteça, uma mudança
cultural que garanta liberdade às mulheres. Foi essa preocupação que
mobilizou “nesta luta” por todo o mundo.

Não somos santas, não somos putas, somos livres. Liberdade de dizer
sim e dizer não!
Parem de ensinar “bons modos” às mulheres e comecem a ensinar seus
filhos, irmãos, amigos, parentes, conhecidos... a não estuprar.

Isso de a gente querer ser exatamente o que a gente é ainda vai nos levar além.
()



Gisele Silva
Presidente da União das Mulheres de Colombo

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